quarta-feira, 26 de março de 2014

A menina que não comia tostas mistas


Pego na minha caixa de recordações, aquela em que guardo fotos, bilhetes, papeis, postais, cartões de aniversário, todas aquelas pequenas coisas das quais não quero abrir mão, não consigo deitar fora, das quais não me quero esquecer, que me recordam o que fui, o que por tempos quis ser, quem gostou de mim e me quis bem, quem esteve comigo nos dias mais importantes, quem não aparece na fotografia tirada naquele dia especial, não por ter estado atrás da câmara, mas por ter escolhido estar ao lado de outro alguém.
Porque saber quem não esteve é tão importante como saber quem sempre o fez.
Continuo, em minutos de puro deleite, a viver estes momentos bonitos, a percorrer cada gargalhada, cada festa, cada palhaçada, em devaneio, em espiral contra o tempo.
Fico feliz por ter estes pedaços de papel, estes pedaços de mim, dos outros, de ti.

E é no meio desta euforia que me deparo com uma carta tua.
Ainda dobrada em 3, quase imaculada, eu antecipo as palavras, e leio-as antes de abrir o papel que, já o sei de cor,  "Catherine...".

De imediato começo a cantar para (tão) dentro de mim:

"Bateram, fui abrir, era a saudade
Que vinha para falar a teu respeito
Entrou com um sorriso de maldade
Depois sentou-se à beira do meu leito
E quis que lhe contasse só metade
Das dores que trago dentro do meu peito"

Estou sentada no sofá da casa dos teus pais, e entretanto chega a tua irmã e nós vamos para o vosso quarto.
Sento-me na tua cama e tu na cadeira junto à secretária, perto da janela.
Falámos durante tanto tempo que quando voltámos a olhar pela janela tinha já entardecido.
Dás um salto da cadeira e dizes que vais preparar-me o lanche.
Sei que vais fazer uma tosta mista, porque é o que sempre fazes.
Sento-me na cadeira da cozinha, junto ao frigorífico, tu colocas a tosta à minha frente e, como sempre, pergunto-te se não vais fazer uma para ti.
Sim, já sei que não vais.
Tosta mista engorda, incha a barriga e tu não podes, porque fazes ballet, e no ballet as meninas são mais pequenas e magras do que tu, e começaram mais cedo do que começaste.

Tento dizer-te que tens de parar de estar sempre tão preocupada em seres a melhor aluna, a melhor no ballet, a melhor no teatro, que isso faz-te mal e que és perfeita.
És tão bonita, e tudo o que queria era ser igual a ti, assim, sem tirar nem por.

Saio destas memórias em escaras.

Recordo-me da tua gargalhada viciante, do brilho húmido do teu olhar, aquele brilho que algumas pessoas têm nos olhos, como se estivessem permanentemente emocionadas com a vida.

Vem me à memória como gostavas de ter nascido com o cabelo encaracolado "como uma princesa", e parece que te estou a ver a encaracolar o cabelo junto ao espelho da tua casa de banho, e de que como nesse dia queimaste a testa porque encostaste o ferro de enrolar demasiado junto.

E por esta altura já dói.
Já sinto as lágrimas a teimar em cair, um nó no estômago, e a saudade.

"Não mandes mais esta saudade
Ouve os meus ais por caridade
(...)
Amor podes mandar se for sincero
Saudades isso não
Eu não as quero"

Vi-te no outro dia numa loja.
Quase certa que nos "olhámos", estavas distraída.
Ou pareceste distraída.
Penso que me viste.
Será que não me quiseste falar?

Gelo, por momento.


Será que não me (re)conheceste?

Continuo o meu caminho, olho de soslaio mais uma vez para a tua silhueta, e aí vejo que estás grávida.
Fico tão feliz que estática, corro para ti e abraço-te, encho-te de beijinhos a ti, a minha melhor amiga, e encho, em sonhos, acordada, a tua casa de flores e roupas lindas e peluches ...
Se for menina vou-te oferecer 1001 roupas cor de rosa (a tua cor preferida) e ela vai ter um tutu, em homenagem à mãe que tanto gosta de dançar.
Se for rapaz vai ter os brinquedos mais fantásticos deste planeta, e vai ter uma bola assinada pelo Cristiano Ronaldo só para ele.
Vamos juntas à tua primeira ecografia e choramos juntas de alegrias enquanto ouvimos o médico dizer: "é um menino!" e tu exclamas que se irá chamar António.
Vou estar no batismo dele, e na festa e aniversário do 1º ano ao 18º.
E um dia estaremos num banco de um qualquer jardim, talvez aquele no Jardim Zoológico que tanto gostávamos, a falar sobre a vida, tão cheia, que passou.
E os meus filhos foram os teus, os teus os meus, e falamos sobre os primeiros passos dos nossos netos.



Na realidade, a confirmação da tua gravidez chega-me pelo facebook... numa publicação de alguém.
Em baixo existe uma opção " Gosto".

Não, quero o outro botão, aquele que me permite voltar atrás e fazer-me continuar na tua vida e tu na minha.
Aquele que proíbe anos de ausências, que me traz todos os momentos que não vivemos, de volta.

Sinto-me angustiada e triste e aquilo que sinto é dor visceral, e ao escrever-te isto choro, embalada por esta palavra tão nossa, que define tão bem aquilo que sinto: Saudade.

Tanta, do que fomos, mas tanto mais do que aquilo que sonhei que seríamos: amigas para todo o sempre.
Peço à saudade que me deixe ir, que me largue de vez porque isto não me faz bem.

Passo todos os dias à frente daquela que era a tua casa.
Olho para a janela daquele que era o teu quarto.

Nem sei onde moras.




                                                                                                                   



4 comentários:

  1. Que post lindo!!!

    beijinhos,
    http://modaeleganciaestilo.blogspot.pt/

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  2. Mas que tão bem que tu escreves..
    gostei muito!! parabéns
    Também tenho amigos que serão eternos e não sei mais onde moram.

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  3. Catarita, a isto se chama "vida". Pois a vida é mesmo isto, encontros e desencontros. Pessoas que entram, pessoas que saem, pessoas que apenas se ausentam por tempos indeterminados... Para mim, é fácil identificar os personagens desta história. Também eu fiz parte dela. Mas, na verdade, também cabe a nós (em parte) continuar com ela para a frente e incluir na nossa história (vida) os personagens que mais gostamos. Uns estão lá sempre, outros só por alguns instantes mas, enquanto existirmos, podemos sempre voltar a inseri-los na nossa vida, basta tentarmos :D

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