sábado, 22 de março de 2014

Memórias do que esqueci

"Escrevo-te diariamente, pensamentos soltos de final de dia, quando o silêncio de casa me deixa pensar nos que mais amo.
Pego no telefone e ligo (te):
- "Bento XVI, boa tarde..."
- " (silêncio...) boa tarde, queria falar com a D. Lurdes, por favor."
...E aqui começa a minha aventura diária; Nunca sei quem vou encontrar do outro lado, e nos dias em que te "encontro", nunca sei se te encontro bem, mal ou assim assim. 
Nuns dias sabes-me bem, em outros nem por isso, mas a minha voz acalma-te. Dizem as enfermeiras que lhes pedes para me ligarem. Em outros dias, dizem-te elas que me ligam, para que te acalmes, e tu, longe de ti, dizes que não queres saber de mim... Que saudades de ti, Mãezoca querida.
Que saudades do "Sandra Isabel" que tanto me aterrorizou na infância, e que vive agora num canto onde guardo as memórias boas.

Que saudades do teu nome no visor do meu telemóvel que em outros tempos me fez suar as mãos, por saber que me ligavas em horas tardias em que não fechavas os olhos pela preocupação de não me saberes bem e que agora  me deixa um travo amargo na boca, por tanto o desejar ver novamente.
A realidade é que de há três anos para cá, não te tenho como sempre te tive: presente. A verdade é que durante estes três anos aconteceu tanta coisa e a maioria delas tu não sabes. Tantos desejos concretizei e tu que sempre torceste por mim e lutaste comigo não os podes "saborear" a meu lado. Tantas lágrimas chorei sem o teu ombro amigo para me amparar.
Foi em Dezembro de 2010 que a bomba estoirou nas nossas vidas; Depois de vários exames, veio o diagnóstico: Alzheimer. Nesse dia estavas distante e as palavras não te deixaram minimamente preocupada. Olhei para ti e tu estavas a olhar em volta da sala, perdida!
-" Além de Alzheimer a D. Lurdes tem esclerose múltipla e essa junção faz com que isto possa ser galopante". E foi! Rapidamente deixaste de andar e hoje tenho a certeza que naquele dia também ouviste tão bem quanto nós o diagnóstico da "nossa" doença. Estiveste 12 longos meses entregue a ti mesma. Não falavas, passavas grande parte dos dias a dormir e a outra parte de olhos fechados. Emagreceste e os teus cabelos ficaram totalmente brancos. O teu corpo criou escaras e nós começamos a fazer luto de ti... A Eugénia, tratava de ti e eu e o Paulo chorávamos-te, com lágrimas de alma. Evitava ver-te e depois revoltava-me por não o fazer, mas era tão difícil ver-te a deixares-me a cada dia...
Decidimos procurar ajuda profissional e duas auxiliares passaram a cuidar de ti.
De um momento para o outro voltaste a abrir os olhos e a falar connosco e o difícil foi explicar-te algo que nem nós percebíamos.
Querias-te levantar, mas não conseguias e isso deixava-te revoltada.
Passaste a chamar a Eugénia de Célia, São, madrinha. A tua neta Maria, minha filha, passou a ser eu e eu passei a ser a tua sobrinha. A tua casa, já não era a tua casa e pedias-me que te tirasse dali, porque querias ir para a TUA casa. Quando tentávamos explicar que estavas em casa, desviavas o olhar e não voltavas a falar do assunto, mas logo de seguida falavas de algo sem sentido. Perguntavas pelo homem que tinha estado a falar contigo sobre a fatura, pelo bebé que dormia aos teus pés, pelo teu filho "desaparecido", falavas das contas por pagar... E nós tentávamos acompanhar o teu raciocínio disperso. Depois passavas mais uns dias fechada dentro de ti. E assim passou mais um ano desta nova mãe. O ano de 2013 foi um ano glorioso para nós. A Eugénia engravidou e tu ganhaste vida. Voltaste a perguntar onde estava o Paulo: "já é tarde, e ele não aparece..."  Voltaste a chamar a Eugénia pelo nome e ficavas em casa sozinha enquanto eles iam às consultas e ficavas ansiosa para saber do bebé. Um dia pediste para te ajudar a andar! E ao fim de dois meses deste-me um priceless moment e caminhaste para mim... Foi o auge de ti em mim. És a maior, Mãezoca querida.
A Marta nasceu e com a Marta veio uma nova Lourdes. Um misto de amor de avó e ciúmes da falta de atenção da tua cuidadora principal. Instalou-se o caos nas nossas vidas. Tu reclamavas atenção, a Eugénia reclamava o sossego e descanso necessário. O Paulo tentava agradar às duas, eu acalmava e tentava aliviar a tensão; é nesta altura que, das Misericórdias de Lisboa , vem a ajuda pedida à uns meses: 6 meses de cuidados continuados em Fátima, na 1ª unidade para doentes com esta demência. Com um programa de reabilitação para que voltes andar.
Quisemos saber a tua opinião e mostramos-te os prós e os contras e avançámos com o internamento de 6 meses. E aqui estás tu, a dois meses de terminar o tratamento, ansiosa por voltares a casa e eu ansiosa por não sei quê...
Todos os fins de semana são para ti, para te visitar. Dia 12 de Maio voltas para casa, de onde talvez nunca deverias ter saído, mas foi uma decisão tua e nós aprovámos. Não sabemos o que irá acontecer nestes dois meses de internamento que te restam, mas o certo é que estás numa "fase boa". Estamos cheios de esperança nesta etapa final.
Foram 4 meses exaustivos pela instabilidade que a doença te traz. Dezembro foi fatídico. As visitas eram passadas em silêncio e tu recusaste abrir os olhos em algumas delas. Janeiro, foi um desastre, estavas revoltada e pela primeira vez, ouvi da tua boca, palavras que jamais imaginei ouvir. "- faz parte da doença..." Diziam as enfermeiras quando lhes pedia desculpa em teu nome.
Março está a ser glorioso. Estas consciente e queres fazer ginástica. Queres voltar a andar. E nós estamos a torcer por ti. 
Bem sei que a culpa não é tua. Não és tu que escolhes como vais acordar. A mim, resta-me o consolo de que não és tu que não queres sabe das tuas memórias; são elas que não querem saber de ti. Foram elas que te abandonaram e eu sei que agora a tua luta é contigo própria.”

1) - Todos sabemos, de uma forma geral, que o alzheimer é  uma doença incurável, degenerativa, cuja principal característica é o declínio cognitivo.Como começaste a perceber que algo não “estava bem”, quais foram os primeiros sintomas que surgiram?
O diagnóstico foi feito em Dezembro de 2010, mas durante esse ano a minha mãe já mostrava sinais de esquecimento e desorientação que pensámos serem devido à idade, como grande parte dos familiares destes doentes. Mas o que nos levou a procurar ajuda foi o facto de ela se ter perdido num sítio que tão bem conhecia. O meu irmão começou por andar atrás dela e foi ele que a trouxe para casa nessas duas ocasiões.

2) - Na altura em que lhe foi diagnosticado Alzheimer, que tipo de apoios foram (ou não foram) dados?
Quando foi detetada a demência, foi-nos disponibilizado apoio psicológico, assim como apoio domiciliário. Foram-nos facultados todos os contactos da associação Alzheimer Portugal, onde eu já fiz um workshop. A medicação que a minha mãe toma para a demência não é comparticipada, mas dão-nos fraldas e resguardos, assim como a alimentação específica que nos é entregue semanalmente em refeições devidamente separadas e identificadas.

3) Como é o dia-a-dia de uma pessoa que tem a doença de Alzheimer e dos que cuidam dela?
Como deves calcular não é fácil viver e cuidar de um doente com uma doença neuro degenerativa progressiva e irreversível, com afetação da própria personalidade e da perda total de autonomia, no entanto a minha mãe tem sido uma doente relativamente "fácil". Fala-se muito das várias fases do Alzheimer e a minha mãe já passou por grande parte delas. A mais difícil, no meu ponto de vista é mesmo a que eles perdem a noção de censura e dizem tudo o que lhes passa pela cabeça.  Pelo que li, e penso que é unânime, a fase em que deixam de reconhecer os familiares é a que mais marca os entes próximos. Eu criei uma defesa, depois de perceber que mesmo nos momentos em que a minha mãe não sabe quem sou, me recebe com um sorriso e que a postura dela muda. Se está nervosa acalma-se, se está calma, fica agitada de felicidade, apenas por ver o meu rosto. 
4) Falta apoio aos doentes de Alzheimer e seus familiares em Portugal? O que tem de ser melhorado?
Disponibilizam de imediato uma equipa de psicólogos, fornecem os contactos da associação e para os doentes acamados fornecem, fraldas, resguardos e a alimentação. No meu ponto de vista somos mais acompanhados pela associação das Misericórdias de Lisboa do que propriamente pelo Centro de Alzheimer,  mas é a nossa experiência, possivelmente, terás outras famílias a dar outra opinião.

5) Como tens sido todo este processo de viver com a doença da tua mãe? Atualmente encontra-se em que fase da doença?
Se tiver que enumerar em que estado da doença ela se encontra, hoje, no dia em que te escrevo e depois de ter estado com ela no sábado, em que teve um discurso razoável, sem vocalizações, calma e que inclusive nos leu um pequeno texto, diria que está na fase 2 da doença, considerando que não anda. No entanto e pela minha experiência, as fases vão e voltam. As fases não são estanque e não há uma progressão contínua, pois se há dias em que já a vi naquilo que consideraria uma fase 4, outros são os que me esqueço que a minha mãe tem alzheimer, que é o caso destas últimas semanas.

6) Tens uma filha (linda), a Maria. Como ela encara a doença da avó?
A minha filha é uma criança surpreendente em alguns aspetos. E tem sido uma surpresa agradável a forma como ela lida com a avó. No início, como era de prever, questionou o que se passava com a avó e ao fim de eu ter explicado o que a avó tinha e o que iria acontecer, não voltou a tocar no assunto e criou uma nova maneira de lidar com a avó. Adaptou-se facilmente às alterações de estado de espirito da avó e convive bem com o facto da avó a chamar de Sandra e até mesmo nos dias maus em que a trata com indiferença e de forma brusca, fala com ela docemente e isso desarma a avó de tal maneira que a conversa termina por ali.
No entanto, não fala sobre a doença da avó, mas isso é habitual nela, pois sempre que ela tem algum assunto que a preocupa ou como neste caso, que a deixa triste, a Maria fecha-se e não fala. Mas preocupa-se comigo e com a avó. Está sempre a tentar decifrar o meu estado de espírito e nos dias menos bons, não me larga e enche-me de mimos, como se me quisesse ressarcir da falta do que possa estar a sentir. Tem sido o meu ombro amigo e uma das minhas companheiras nesta etapa.
7) A doença da tua mãe moldou a tua forma de seres mãe?
A doença da minha mãe moldou a minha forma de ser, em todo o meu Ser.
Nunca tive nada por garantido, pois bem cedo a vida se encarregou disso. Tive perdas irreparáveis nestes 34 anos de vida. Perdi um grande amigo na juventude e de seguida perdi o meu irmão, que foi quem me moldou e me transmitiu tudo aquilo em que acredito. Aos 23 anos perdi o meu querido pai. Por isso sempre fui uma pessoa muito consciente de que o que se tem hoje, amanhã poderá não se ter, dai mostrar diariamente aos que amo, o quanto os amo. A doença da minha mãe trouxe-me uma dolorosa jornada: A perda dela, muito antes dela falecer efetivamente. Trouxe-me o inverter de papéis, na relação de filiação, se é que me entendes. Neste contexto posso considerar que as constantes "perdas" com que me tenho confrontado durante este processo degenerativo da minha mãe, conduzem-me para um processo continuo de pequenos "lutos", cuja função é fazer com que me adapte à nova realidade e que crie estratégias para lidar com as situações que possam aparecer no dia-a-dia. 
8) Se pudesses escolher algo que a tua mãe não se esquecesse jamais, o que seria?
Costumo dizer que mais importante que um dia ela não me reconhecer é saber que ela sabe que este rosto é o que lhe dá amor e carinho, e eu sei que isso jamais ela irá esquecer.









A Sandra pediu-me que colocasse aqui os seus agradecimentos.

Aqui ficam:

"Gostava de deixar um agradecimento em especial ao meu marido João Martins, pelo amor, carinho, paciência e pelo companheirismo que tem comigo nesta "luta". Agradecer às minhas amigas que me ouvem e acolhem, em especial à Cátia que me acompanha em algumas ocasiões ao centro em Fátima, agradecer-te também a ti pelo convite que tantas lágrimas me fez cair mas que me soube tão bem escrever. "



Sandra Nogueira, uma querida amiga e alguém que admiro e gosto muito.
Não vou dizer que o que escreveu, e mais principalmente, o modo bonito como escreveu, me tenha deixado estupefacta ou surpresa.

Sei as enormes capacidades e qualidades da Sandra. 
Mas o facto de as conhecer não quer dizer que não me emocione cada vez que sou confrontadas com as mesmas.

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